Sobre la noción de especie. Reflexiones de Viveiros de Castro.

Zoo/Bio

Para los que no conozcan el trabajo de Eduardo Viveiros de Castro sobre el concepto de especie y el perspectivismo multinatural amazónico, dejo aquí una buena síntesis y unas buenas y recientes reflexiones en torno a ello del propio antropólogo brasileño. Es un pequeño texto escrito por el propio Viveiros  de Castro y que acaba de ser publicado este invierno 2013 en la revista E-misferica, en su número 10.1, dedicado las «discusiones epistemológicas, políticas, jurídicas, antropológicas, éticas y estéticas relacionadas con el problema de la “espécie”—una categoria central tanto para a reflexión crítica en torno a la llamada «cuestión animal» como para las aproximaciones que, desde el punto de vista de la biopolítica, reflejan sobre los modos de dominación, gobierno y antagonismo centrados en la reivindicación de la vida biológica» (citado directamente del Editorial. La traducción es mía).

La verdad es que este número de la revista está muy bien, vale la pena echarle un ojo.

El texto de la revista y que reproduzco a continuación está introducido por Álvaro Fernández-Bravo, que es un profesor argentino de la Universidad de Nueva York-Buenos Aires y que estudia los usos culturales y políticos de la noción de especie. Fernández-Bravo preparó un cuestionario al antropólogo brasileño en torno a la noción de especie dentro de la historia de la antropología y a partir de éste, Viveiros de Castro escribió unas breves consideraciones en torno a este tema clave de su producción teórica y etnográfica.

Antes del texto, no puedo evitar dejar algunas referencias básicas sobre el tema y sobre los autores:

FERNÁNDEZ BRAVO, A. (2011), «La porosidad de los límites. zonas de contacto en la imaginación biopolítica latinoamericana», Aletria n.3 vol.21, pp. 179-190.

SEEGER A., DA MATTA, R. & VIVEIROS DE CASTRO, E. (1979), “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, Nova série (32): 11-29.

VIVEIROS DE CASTRO, E. (2002), A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac& Naify.
VIVEIROS DE CASTRO, E. (2010), Metafísicas caníbales: líneas de antropología postestructural. Buenos Aires, Katz.

El texto que sigue está en portugués, pero se entiende perfectísimamente. Si lo queréis leer desde la ubicación original, este es el enlace directo con el texto: Álvaro Fernández-Bravo, «Eduardo Viveiros de Castro: Algumas reflexões sobre a noção de espécies».

Este es el texto:

Eduardo Viveiros de Castro: Algumas reflexões sobre a noção de espécies.

ÁLVARO FERNÁNDEZ BRAVO| NEW YORK UNIVERSITY- BUENOS AIRES, CONICET

O texto a seguir foi escrito pelo antropologista brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (Rio de Janeiro, 1951) em resposta a um questionário acerca da noção de espécies, preparado e enviado para ele por Álvaro Fernández-Bravo, para a e-misférica 10.1. O trabalho recente de Viveiros de Castro não é muito bem conhecido pelos leitores americanos [em inglês]. O seu último livro publicado em inglês saiu há vinte anos atrás: From the Enemy’s Point of View: Humanity and Divinity in an Amazonian Society (Chicago, 1992). Dentre as suas obras mais recentes estão A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia(São Paulo: Cosac Naify, 2000), Métaphysiques cannibals. Lignes d’anthropologies post-structurale (Paris: Presses Universitaires de France, 2009) e a versão em espanhol do mesmo livro, Metafísicas caníbales. Líneas de antropología postestructural (Buenos Aires: Katz, 2010). Ele já lecionou na University of Chicago, Cambridge University, University of Manchester, École des hautes études en sciences sociales, em Paris, Universidade de São Paulo e Universidade Federal de Minas Gerais e é atualmente professor de antropologia do Museu Nacional – UFRJ, bem como pesquisador da CNRS, França.

O foco das questões apresentadas ao autor é o Perspectivismo Multinaturalista, um conceito desenvolvido na sua obra, que enfatiza o ponto de vista dos povos indígenas da região amazônica. A proposta de Viveiros de Castro é distanciar-se do mundo ameríndio como um objeto de observação/estudo rumo a um esforço no sentido de ver o mundo (inclusive os seus componentes não-humanos) a partir de um ponto de vista indígena. Não o retorno do nativo, mas a vez do nativo, como ele afirma. O perspectivismo ameríndio é uma teoria e uma visão do mundo fortemente ligada ao “multinaturalismo”, uma categoria oposta ao multiculturalismo, que assume a coexistência de diferentes “naturezas”, como na cosmologia amazônica. Estas “naturezas” incluem percepções animais não-humanas, além da percepção humana, e todas elas compartilham uma perspectiva ou afinidade comum. Como diz o autor, o que é relevante atualmente não é mais classificar as espécies em que a natureza se divide, mas saber como as próprias espécies assumem essa tarefa (2010: 69), produzindo imagens da natureza de acordo com as suas perspectivas. Em seus livros e artigos, em um diálogo ativo com posturas filosóficas de Deleuze, Viveiros de Castro refere-se em várias ocasiões a “espécies”, particularmente em relação ao par humano-animal. Animais e humanos compartilham um ponto de vista comum, segundo o qual “naturezas” diferentes e móveis são concebidas.

As questões endereçadas a Eduardo Viveiros de Castro levaram-no a desenvolver alguns dos seus conceitos, particularmente o relacionamento entre o Perspectivismo Multinaturalista e a noção de espécies. Esta ainda é uma noção útil para se entender o mundo? Qual o seu valor para a produção de conhecimento? É possível evitar a violência epistêmica que tem caracterizado as taxonomias e hierarquias raciais na história da ciência ocidental e continuar pensando em termos de espécies? Devemos preservar a noção de espécies como uma ferramenta conceitual ou ela deveria ser abandonada completamente? É possível capturar essa noção de espécies e atribuir-lhe uma função emancipatória?

Eduardo Viveiros de Castro: A noção de espécie na História da Antropologia

Não tenho competência para falar sobre a história da noção de espécie na filosofia ocidental. No caso da antropologia, a noção entra em jogo em dois contextos conceituais diferentes.

Em primeiro lugar, e de modo mais importante — pois envolve a definição mesma do objeto da disciplina —, a antropologia, desde muito cedo, tem se apegado ao postulado da “unidade psíquica da espécie”, o que equivale a definir a espécie humana por suas capacidades “psíquicas”, entenda-se, no caso, essencialmente cognitivas. O que, por sua vez, pressupõe uma descontinuidade fundacional entre nossa espécie e todas as demais, visto que a “unidade psíquica” sugere que nossa espécie contra-unifica todas as demais em uma só província sub-psíquica ou a-psíquica, isto é, exaustivamente determinada por uma corporalidade extra-psíquica. A ideia de espécie, neste caso, funciona de modo algo paradoxal, visto que para a antropologia só há, a rigor, uma espécie, a humana, que se reveste assim da natureza de um gênero ou domínio, visto que as diferenças “ônticas” ou “empíricas” entre as inumeráveis espécies vivas são neutralizadas pela grande diferença “ontológica” ou “transcendental” entre essa espécie especial e as espécies comuns. A humanidade funciona aqui como um anjo coletivo, no sentido em que os anjos, para alguns pensadores medievais, eram ditos ser indivíduos que eram, cada um separadamente, sua própria espécie. A analogia com os anjos não é acidental, uma vez que a humanidade foi frequentemente pensada como uma entidade halfway between ape and angel. Não é preciso observar que o aspecto ape é o corpo, e que o angel corresponde à alma ou à “unidade psíquica”. A antropologia é congenitamente dualista e por isso a ideia de espécie é menos um modo de situar o homem na multiplicidade natural do que de separá-lo radicalmente como unicamente dual e dualmente único.

Por outro lado, qualquer tentativa de se introduzir descontinuidades antropologicamente (isto é, “psiquicamente”) relevantes no domínio animal, entendido como o domínio residual do não-humano, ameaça a homogeneidade, e portanto a integridade, da espécie humana como unidade. Como se houvesse um jogo de soma zero entre unidade interna e contra-unidade externa: toda diferenciação interna significativa do domínio exterior do não-humano ameaça diferenciar internamente o domínio do humano, exteriorizando parte deste domínio como quase-humano ou sub-humano. Em outras palavras, tudo se passa como se o único modo de se exorcizar o racismo (o especismo interno) fosse pelo endurecimento do especismo externo (a tese do excepcionalismo humano). Mas Lévi-Strauss, em sua célebre homenagem a Jean-Jacques Rousseau (1962), já advertia que a relação entre racismo e especismo não é de descontinuidade, e sim de continuidade. O especismo antecipa e prepara o racismo:

Never in the course of the past four centuries has western man been in a better position to realize that by arrogating to himself the right to raise a wall dividing mankind from the beast in nature, and appropriating to himself all the qualities he denied the latter, he was setting in motion an infernal cycle. For this same wall was to be pulled steadily tighter, serving to set some men apart from other men and to justify in the minds of an ever-shrinking minority their claim to being the only civilization of men. Such a civilization, based as it was on the principle and notion of self-conceit, was corrupt from the very start.

Em segundo lugar, o conceito de espécie foi mobilizado na antropologia para dar conta de um fenômeno cuja história intelectual é indissociável da própria disciplina, a saber, o chamado “totemismo” ou, mais geralmente, os inúmeros dispositivos de diferenciação interna de uma sociedade, que lançam mão das diferenças sensíveis entre as espécies vivas (ou, mais geralmente, os chamados natural kinds) para pensar a segmentação do socius em categorias articuladas horizontal ou verticalmente. A interpretação clássica dos fenômenos totêmicos os via como manifestações de uma identidade originária entre os humanos e os animais e demais formas de vida. Lévi-Strauss, mais uma vez, se não foi o primeiro, foi o antropólogo que inverteu os termos do problema e chamou a atenção para o fato de que a identidade entre dois “gêneros” diferentes (o humano e um não-humano genérico) era subordinada à diferença entre dois sistemas de diferenças, as diferenças entre as espécies “naturais” e as diferenças entre as espécies “sociais” ou segmentos internos à sociedade humana. Notem que a explicação, embora enfatize as diferenças internas do domínio não-humano, continua a pensar a “série natural” dos totens como globalmente descontínua em relação à “série cultural” dos segmentos sociais. O pai do estruturalismo, por fim, reservará à noção de espécie um papel absolutamente central em sua imagem do “pensamento selvagem”: a espécie aparece como o operador central de uma razão essencialmente classificatória, disposta como ela está, a meio caminho entre o indivíduo e a categoria; acrescente-se que a espécie, para Lévi-Strauss, é o equivalente empírico do signo pleno, a meio caminho da pura ostensão concreta (o indivíduo) e da categoria abstrata (o conceito). A espécie, enquanto unidade de uma multiplicidade, aparece assim como a forma mesma do objeto para o pensamento selvagem. Neste sentido, o pensamento selvagem é aristotélico (e vice-versa), como argumentará Scott Atran.

Note-se ainda que o primeiro contexto de uso da noção de espécie é antropocêntrico: a espécie humana não é uma espécie como as outras, pois exprime determinações inextistentes nas demais espécies, tomadas como um todo. Ela exprime, na verdade, uma certa indeterminação essencial, uma irredutibilidade às determinações naturais que distinguem as espécies entre si. A espécie humana, como vimos, é dupla: é uma espécie e ao mesmo tempo é um domínio; é uma entidade empírica e um sujeito transcendental, que conhece a sua própria condição e, nesta medida, “liberta-se” dela. O segundo contexto de uso, os sistemas totêmicos, permanece em certa medida antropocêntrico, uma vez que as espécies vivas são pensadas como estando em relação biunívoca com sub-espécies humanas (os segmentos totêmicos). Cada espécie totêmica corresponde a um “tipo” de humano — uma humanidade parcial, como se o universo, representado em miniatura pela multiplicidade finita das espécies totêmicas, estivesse em relação projetiva homológica com a sociedade. A relação entre a sociedade como microcosmos e o cosmos como macro-sociedade estabelece uma identidade formal entre relações internas e relações externas.

A descoberta do “perspectivismo multinatural” como solo pressuposicional das cosmologias ameríndias — e muitas vezes como doutrina explicitamente elaborada no xamanismo e na mitologia nativos — levou à posição conceitual de uma virtualidade não-antropocêntrica da ideia de espécie. O perspectivismo é o nome que demos a uma elaboração culturalmente característica do chamado “animismo”, atitude cosmológica que consiste em recusar a descontinuidade psíquica entre os diferentes tipos de seres que povoam o cosmos, imaginando todas as diferenças inter-específicas como um prolongamento horizontal, analógico ou metonímico das diferenças intra-específicas (e não, o que é o caso do totemismo, como sua repetição “vertical”, homológica ou metafórica). A espécie humana deixa de ser um domínio separado e passa a definir o “universo de discurso”: todas as diferenças species-specific aparecem como modalidades do humano, o que faz com que a condição humana deixe de ser “especial”, passando, ao contrário, a ser o modo default ou a condição genérica de qualquer espécie. Desaparece um domínio da natureza como província contra-unificada pela unidade eminente do domínio humano. O animismo é “antropomórfico” na exata medida em que é anti-antropocêntrico. A forma humana é, literalmente, a forma no interior da qual todas as espécies emergem: cada espécie é um modo finito de uma humanidade, como substância universal. Isso inclui a espécie humana (tal como nós a entendemos), que passa efetivamente a ser mais uma espécie: as diferenças entre as sub-espécies humanas (segmentos sociais de um mesmo povo ou povos diferentes) são da mesma natureza que as “super-espécies” humanas, ou o que nós chamamos de espécies naturais.

O perspectivismo é a pressuposição de que cada espécie viva é humana em seu próprio departamento, humana para si, ou antes, que “tudo para si é humano” ou antropogenético. Esta ideia tem sua origem nas cosmogonias indígenas, onde a forma primordial do ser é humana: “no princípio não havia nada”, dizem alguns mitos amazônicos, “só havia pessoas”. Os diferentes tipos de seres e fenômenos que povoam e ocorrem no mundo são transformações dessa humanidade primordial.

Tal condição originária persiste como uma espécie de background anthropomorphic radiation, fazendo com que todas as espécies atuais se apreeendam mais ou menos intensamente como humanas. Na medida em que elas não são apreendidas pelas demais espécies como humanas, a distinção entre perspectiva reflexiva ou interna e perspectiva third person ou externa é crucial. A diferença entre as espécies deixa de ser apenas uma distinção externa e passa a incorporar constitutivamente uma mudança de ponto de vista. O que define uma espécie é a diferença entre o ponto de vista interno e o ponto de vista externo dessa espécie sobre si mesma e das outras sobre ela. Assim, por um lado, toda espécie passa a ser “dupla”, consistindo em uma dimensão espiritual (a “pessoa” humana, interior de cada espécie) e uma dimensão corporal (a “roupa” ou equipamento corporal, distintivo das capacidades de cada espécie). Ao se universalizar, o dualismo invisível/visível, primeira pessoa/terceira pessoa deixa de singularizar uma espécie e passa a definir toda espécie enquanto tal. Não há “definição” de uma espécie que possa ser feita de um ponto de vista species-independent. Toda espécie é um ponto de vista sobre as outras e tudo o que há é uma espécie de espécie, ou seja, é um “sujeito”.

Na medida em que toda espécie é formalmente composta de uma mesma oscilação perspectiva dentro/fora, alma/corpo, humano/não-humano — pois toda espécie apreendida desde o ponto de vista de outra espécie não é apreendida como humana, o que inclui a nossa própria espécie quando considerada, por exemplo, do ponto de vista dos jaguares ou dos pecaris (para os quais somos, respectivamente, pecaris e jaguares, ou espíritos canibais) —, a passagem entre as espécies é muito mais fluida do que no caso de nossa “vulgata cosmológica antropocêntrica e excepcionalista”. As espéciessão “fixas” para as cosmologias amazônicas, no sentido de que as transformações globais pertinentes se fizeram em geral de uma só vez no mundo pré-cosmológico do mito (os mitos são, em essência, narrativas do processo de especiação) — não há transformismo continuísta como em nossa biologia evolutiva moderna. Mas, ao mesmo tempo, os “indivíduos” de cada espécie podem “saltar” de uma espécie a outra com relativa facilidade, um processo que é esquematizado principalmente pela imagística da predação alimentar: a incorporação por outra espécie é frequentemente concebida como a transformação integral da presa em um membro da espécie do predador. O que parece dar razão à frase de Samuel Butler, quando este dizia que “there is no such persecutor of grain as another grain when it has once fairly identified itself with a hen” (Life and Habit, p. 137). Outra forma de transformação inter-espécies é o xamanismo, que é a capacidade manifesta por certos indivíduos (de diferentes espécies) de oscilar entre o ponto de vista de duas (ou mais) espécies, sendo capaz de ver os membros de ambas como eles se vêem, ou seja, como humanos, e assim de comunicar os seus pontos de vista e tornar inteligível o que só para eles (os xamãs) é também sensível, a saber, o fato de que cada espécie aparece para outra de modo radicalmente diferente daquele que aparece para si mesma.

A diferença essencial deste “perspectivismo” para com o nosso “multiculturalismo” é que a variação de ponto de vista não afeta apenas o “modo de ver” um mundo que seria objetivamente exterior ao ponto de vista e maior que qualquer ponto de vista possível, um mundo ontológica ou epistemologicamente infinito. Em primeiro lugar, o “mundo” perspectivista é um mundo composto exaustivamente por pontos de vista: todos os seres e coisas do mundo são sujeitos em potencial, os seres que “vemos”, portanto, são sempre seing beings; aquilo que experimentamos é sempre um sujeito de uma experiência possível; todo “objeto” é um tipo de “sujeito”. Em segundo lugar, a diferença entre as espécies não é uma diferença de “opinião” ou de “cultura”, mas uma diferença de “natureza”: é uma diferença no modo como cada espécie é experimentada pelas outras, ou seja, como corpo, como conjunto de afetos sensíveis, de capacidades de modificar e ser modificado por agentes de outra espécie. O mundo visto por outra espécie não é o mesmo mundo visto diferentemente, mas um “outro mundo” visto da mesma maneira. Cada espécie, ao se ver como humana, vê as demais, isto é, o mundo, como nós, os que nos apreendemos como humanos, o vemos. Toda espécie vê o mundo do mesmo jeito. Só há um ponto de vista, o ponto de vista da humanidade. O que muda é o ponto de vista deste ponto de vista: que espécie está vendo o mundo, ao se ver a si mesma como humana? Se é a espécie dos jaguares, estes verão os humanos (para nós) como se fossem pecaris — porque seres humanos comem pecaris —, e não outros humanos. Todos os humanos compartilham da mesma cultura, a cultura humana. O que muda é a natureza do que vêem, conforme o corpo que esses humanos de referência possuem. O ponto de vista está no corpo. O perspectivismo não é, assim, uma teoria da representação (da natureza pelo espírito), mas uma pragmática dos afetos corporais. É a potência species-specific de cada corpo que determina o correlativo objetivo das categorias culturais universais “aplicadas” por todas as espécies em seu momento humano.

A espécie viva, a diferença entre as espécies, assim, é um conceito fundamental nos mundos perspectivistas. Mas a espécie ali não é tanto um princípio de distinção quanto um princípio de relação. A diferença entre as espécies não é, para começar, anatômica ou fisiológica, mas comportamental ou etológica (o que distingue as espécies é muito mais seu etograma — o que comem, onde habitam, se vivem em grupo ou não. etc. — do que sua morfologia). Nesta medida, as diferenças entre as “espécies” não se deixam projetar sobre um plano ontológico homogêneo, exceto se definirmos a corporalidade como constituindo tal plano. Mas essa corporalidade é um conjunto heterogêneo e relacional de afetos, antes que uma substância dotada de atributos. Diferenças entre hábitos alimentares de jaguares, pecaris e humanos, diferenças entre hábitos alimentares de grupos humanos, aparência física de animais diferentes e povos diversos — todas essas diferenças são igualmente tomadas como diferenças que exprimem afetos corporais diversos. Não é mais difícil, de jure, que um Araweté se transforme em um Kayapó do que em um jaguar. Os processos de transformação envolverão apenas afetos qualitativamente distintos. Em segundo lugar, as diferenças inter-específicas são blocos de virtualidades relacionais, de modos de posicionamento relativo das espécies entre si. A diferença entre as espécies não é um princípio de segregação, mas de alternação, pois o que define a diferença específica é que duas espécies (ao contrário de dois indivíduos quaisquer) não podem “ser” humanas ao mesmo tempo, isto é, ambas não podem perceber-se como humanas uma para a outra, ou deixariam de ser duas espécies diferentes.

Se projetarmos o perspectivismo sobre ele mesmo, e sobre nosso multiculturalismo, seremos obrigados a concluir que não é possível ser ao mesmo tempo perspectivista e multiculturalista. Nem é desejável. Deveremos concluir que essas duas antropologias são inter-tradutíveis (comensuráveis), mas são incompatíveis (não há síntese dialética possível). Falei em “antropologias”, porque entendo que toda cosmologia é uma antropologia; não no sentido trivial de que os seres humanos só conseguem pensar em termos de categorias humanas — os índios estariam de acordo, mas não concordariam que só a nossa espécie seja “humana” —, mas de que mesmo o nosso antropocentrismo é inevitavelmente um antropomorfismo e que toda tentativa de ir além da “correlação” é apenas um antropocentrismo negativo, ainda e sempre referente ao anthropos. O antropomorfismo, longe se ser um especismo, como o é o antropocentrismo — seja este cristão, kantiano, ou neo-construtivista —, exprime a “decisão” originária de pensar o humano como dentro do mundo, não acima dele (mesmo que apenas por um lado de seu ser dual). Em um mundo onde toda coisa é humano, a humanidade é toda uma outra coisa.

Tradução de Tissiana Oliva